Por um feminismo de irmãs da terra

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Mais uma vez em março, depois de um inverno quase ausente devido às altas temperaturas provocadas pela emergência climática, voltamos a levantar a voz para dizer o que nos está a percorrer.

Este ano temos de começar por falar da Palestina, uma terra que tem sido espoliada há décadas e que está agora a sofrer um genocídio às mãos do Estado de Israel. A população civil de Gaza está a ser bombardeada, a passar fome e a adoecer. É também assim que se destrói um povo, negando-lhe o acesso à terra e à soberania alimentar. O que se passa na Palestina angustia-nos: é insuportável ver todos os dias imagens do genocídio nos nossos ecrãs e continuar a viver como se nada estivesse a acontecer. Desde as nossas aldeias, exigimos um cessar-fogo e uma Palestina livre para os seus habitantes.

Por elas, pelas mulheres da Palestina, que resistem e lutam contra a ocupação e que, na medida do possível, cuidam das suas famílias e comunidades, tentando obter alguma comida e água, protegendo, sobrevivendo, amparando os demais, numa guerra declarada contra a terra e a vida.

Irmãs da Terra,

Vivemos dias convulsos, com tratores nas ruas; uma parte da gente do campo está mobilizada. Os ecos dos protestos atinge uma visão paternalista, condescendente e muito ligada à cidade. Um olhar que nos reduz a um único tipo de campo e a um único tipo de história. Claro que estamos conscientes dos interesses que respondem a esta aposta comunicativa e preocupa-nos a confusão que suscita: o que se exige, quem o faz, quem o pode fazer, a partir de que lugares se faz? No manifesto das “Revoltas da Terra”, dos movimentos franceses de defesa do território, lemos que a ecologia será camponesa e popular ou não o será. Acrescentámos que o nosso campo, que estamos a construir, será agroecológico e popular ou não o será. Queremos que ele seja composto pelo campesinato e não pelo agronegócio. É urgente uma mudança de modelo, que se centre na vida, na conservação do território e na biodiversidade, que nos alimente com alimentos saudáveis e não nos deixar doentes, e que todas as pessoas que nele trabalham tenham condições de vida dignas. Acreditamos firmemente que todos nós temos um lugar na proposta agroecológica. Todo o território trabalha em harmonia, respeitando os limites dos nossos recursos naturais, tecendo uma rede afetiva, sociocultural e económica através dos alimentos que geramos e consumimos; através do reconhecimento do valor e do cuidado mútuo entre quem alimenta e quem é alimentado. Estamos fartas de discursos de ódio que apontam o inimigo como igual e nos deixam sem energia para denunciar o sistema que nos quer em confronto. Somos todas nós irmãs e pensamos que, com base no respeito, na honestidade e no apoio mútuo, poderemos criar um meio rural vivo e diversificado onde possamos estar todas juntas. Seria importante perguntarmo-nos como gostaríamos de nos alimentar e saber que nomes, histórias e vidas o nosso prato de comida traz consigo. Acreditamos que há uma necessidade urgente de redefinir as pessoas que trabalham para tornar possível a nossa alimentação. Vivemos num sistema em que os alimentos são deitados fora como se não fossem nada, em que o ato de comer não é valorizado e em que, muitas vezes, enchemos o carrinho das compras de forma mecânica, sem pensar no que está por detrás de cada alimento que levamos. Claro que não queremos cair no discurso da culpabilização. Estamos conscientes dos alimentos que chegam aos supermercados, do tempo que demora a fazer compras conscientes e a cozinhar, e do sistema em que estamos inseridas, que nos torna precárias e nos esgota. Reivindicamos o direito à imaginação. Queremos continuar a imaginar, a fazer parte de discursos em que outros mundos são desejáveis. Uma política que desejamos vá muito para além do desejo de consumir (seja o que for, sempre mais, sempre imediatamente). Queremos discursos que gerem esperança, que rompam com a superioridade moral ligada às academias e aos centros políticos.

Irmãs da terra, ainda cá estamos, nós que, por vezes, não podemos dar-nos ao luxo de sair à rua nem de protestar. Continuamos a ser aqueles que estão amarradas a uma cama ou a uma poltrona, sem a mais mínima opção de movimento. As excluídas, as rotuladas por viverem outras formas de sentir, fazer ou dizer. Continuamos a ser aquelas que são rejeitadas por terem um diagnóstico psiquiátrico, aquelas que recebem menos no mesmo emprego por causa de uma deficiência. Continuamos a ser maltratadas, em relações perversas e cruéis. Continuamos a ser invisíveis apesar de anos de conhecimento. Continuamos TODAS a ser negligenciadas por não cumprirmos os mandatos das sociedades sexistas, capacitistas, machistas ou idadistas.

E com esta diversidade, continuamos a enriquecer territórios cheios de vulnerabilidades e forças, construindo outras formas de habitar, partilhar e viver.

Irmãs da Terra,

não esquecemos de todas as mulheres migrantes que trabalham, muitas vezes sazonalmente, em fábricas, campos e estufas. São remuneradas de forma diferente consoante a sua origem, não têm liberdade para falar enquanto trabalham, não têm garantias de que irão trabalhar as horas contratadas e de que serão pagas se não houver produção. Para além de tudo isto, no caso das mulheres que trabalham em fábricas de seleção, destruição e armazenamento de fruta no verão, o seu trabalho é realizado a baixas temperaturas para garantir o estado da fruta que será posteriormente distribuída e com horários de trabalho variáveis, mesmo à noite, o que torna muito difícil a conciliação da vida familiar, especialmente no verão, quando não há aulas.

Irmãs da Terra,

queremos dar alegria a este manifesto. Reivindicamos com orgulho às nossas vizinhas, aquelas mulheres que encontramos sempre nas ruas das nossas aldeias para conversar, que levam as suas cadeiras para a sombra, que partilham braseiros e refeições, e que formam ali uma comunidade. Queremos uma vida digna para todas elas, e que nos sintamos felizes e com sorte por vivermos onde vivemos. Para todas as mulheres que se preocupam com os que vivem na sua aldeia e que respeitam cada um, que possa ser quem quiser. Não há tempo para julgar, mas sim estar presente para aqueles que precisam. Sem esquecer que, por vezes, podemos ser nós a precisar de apoio, porque a força e a vulnerabilidade são atributos que nos pertencem.

Queremos olhar para o futuro e revermo-nos nele, assim. Mas, para isso, precisamos de ter acesso a serviços básicos e precisamos que a cultura não seja exclusiva das cidades e não se limite aos feriados. As nossas aldeias também são cultura. Vamos encontrar a forma e a fórmula!

É fundamental haver espaços onde articular uma biblioteca, uma brinquedoteca, um teatro, uma sala para projeção de filmes… Espaços que se transformam e possibilitam a vida em comum. Espaços de diálogo e comunidade.

Aqui damos nomes, aqui sentimo-nos mais unidas do que nunca. Aqui nos levantamos, partilhamos os nossos medos, deixamos de lado o nosso silêncio. Afirmamos que há muitas formas de habitar o território, muitas ruralidades que dialogam, que aprendem, que constroem, que cuidam e acolhem. Uma das irmãs da terra: cheia de feminismos e diversidade, de agroecologia, de solidariedade com os povos oprimidos, de memória, de interdependência, de apoio mútuo, esperança e alegria.

Por um feminismo para todas,

por um feminismo de irmãs da terra.

*Este manifesto foi traduzido para português por Blanca Casares com a ajuda de M.C. e R.B.

*Este manifesto é lido por Marina Garcia. Pode ouvi-lo aqui.

*O cartaz é obra de Iraia Okina. Pode descarregá-lo aqui.

**(Este manifesto foi possível graças ao trabalho coletivo de Leire Milikua, Blanca Casares, Patricia Dopazo, Lareira Social, María Sánchez, María Montesino, Jornaleras de Huelva en Lucha, Lucía López Marco e Coletivo Arterra. Hermanas de tierra é um manifesto para o 8M que foi promovido em 2018 por María Sánchez e Lucía López Marco).

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