Por um feminismo de irmãs de terra

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Mayte Alvarado

Ao amanhecer, acostumamo-nos a olhar para o céu procurando sinais de chuva, em uma terra assolada pela seca. Em alguns pontos começa a derreter a geada, crescem os riachos; o musgo envolve cascas, pedras, árvores, nos lembrando de que a vida segue, que nós também estamos aqui, que também somos parte do território.

O último relatório do IPCC volta a nos lembrar de que somos vulneráveis às mudanças climáticas, e que já não valem as meias ações. Não podemos estender mais a inação: senão, perderemos essa pequena e fugaz janela de oportunidades que pode assegurar, para todas as pessoas, um futuro habitável e sustentável.

Este inverno primaveril não pode nos distrair da emergência climática, da falta de água que racha nossos solos, dos macroprojetos que pressionam nosso território e que ameaçam as múltiplas formas de vida de nossos meios rurais. Por isso estamos aqui, levantando a voz, sustentando o território, não deixaremos de tecer redes entre nós, nos ajudando e visibilizando tudo aquilo que nos ameaça e quer nos derrubar. Juntas podemos enfrentar as adversidades e superar todos os tropeços, porque sem a alegria e a empatia não somos nem seremos nada.

Irmãs de terra,

outro março mais

voltamos a encher nossas praças e ruas, reivindicando que outro amanhã é possível; um futuro de igualdade, diversidade e sustentabilidade. Hoje queremos, todas juntas, começar a habitá-lo: não perder nunca a esperança.

A pandemia continua nos sacudindo, mas nós soubemos seguir sendo rebanho. Como todas essas ovelhas que se juntam e protegem suas cabeças debaixo do corpo de suas companheiras. Não pensamos em um meio rural sem o coletivo: sem a ajuda e o apoio mútuo não podemos seguir adiante.

Não queremos fazer parte dessa ruralidade solitária e isolada que querem impor, uma ruralidade que se aproveita, que engana e que se agarra a uma nostalgia perigosa que romantiza a desigualdade e o machismo que — por desgraça — viveram nossas mães e avós. Que nos reprime e só nos reduz a tradição e maternidade, que não quer — e que também não se interessa por — abrir uma janela à diversidade e à realidade de nossos meios rurais.

Porque precisamos de novas ruralidades cheias de feminismos, agroecologia, diversidade, mas também de memória. Nestes tempos em que a incerteza nos atravessa, é importante saber de onde viemos para pensar e imaginar uma trilha que nos leve a um futuro melhor; caminhos que possam nos ensinar, a partir de outros aprendizados, até onde podemos e queremos ir.

Por isso esperamos mais um ano, com a mesma paciência, que floresça o sabugueiro, que o capim inunde o campo, que o cheiro de hortelã e manjericão volte a perfumar o ar que respiramos. Também esperamos para colher os frutos das árvores, as hortaliças da terra. Voltaremos a compartilhar nossas receitas, a visibilizar todo esse conhecimento que tantas vezes foi desprezado por não fazer parte da academia, das universidades. Tal como nos ensinaram tantas mulheres que vieram antes de nós, como nossas avós, vamos desembaraçar os saberes e unir os fios, refazer as mechas; podemos fazer parte de um tear que acolha, mas que também se questione, que atue como ponte entre aquelas de quem viemos e aquelas que ainda virão.

As ameaças de hoje não deixam de ser, em parte, as mesmas de sempre, disfarçadas das palavras “progresso” e “prosperidade”. Mas nós somos como as casas de nossas aldeias, fortes, levantadas com as pedras da própria paisagem, feitas de árvores e diálogos com a terra. Apesar das represas, do abandono e do exílio forçado, muitas delas se mantêm de pé, testemunhas da ânsia de um sistema hiper extrativista que só pensa em dinheiro e produção, em usar as palavras verdes e renováveis para lavar as próprias mãos; para permitir, com toda a impunidade do mundo, que proliferem por todo o território macroprojetos que põem em risco reservas naturais protegidas e de alto valor ambiental. Monoculturas de placas solares e parques eólicos, desertos verdes, galpões intensivos onde se perde o vínculo entre o território, a pessoa e o animal. Explorações industriais que contaminam nosso solo e a água que bebemos. Não queremos esta febre de industrialização que contamina, precariza e mata. Que se esquece de todas as pessoas que moram e tornam possíveis nossos povos, invisibilizando e vulnerabilizando coletivos como o das mulheres imigrantes, ainda sem condições dignas de trabalho e de vida. Aqui estamos para levantar a voz, para dizer a eles que não deixaremos de lutar para garantir uma terra digna.

Irmã de terra,

não deixamos de ser árvores. Enraizadas entre nós mesmas, com nossas ações e palavras, também podemos ser simbiose, rizomas, bosques. Entrelaçadas hoje nos manifestamos, cantamos, damos as mãos, vamos andando sem medo, sempre adiante. Vemos isso no ressurgimento do pinheiro-das-canárias depois do vulcão, também na lava marinha que deixa crescer as primeiras algas. Apesar da lava e da cinza, sempre voltam os brotos.

Hoje, mais que nunca, pensamos em todas as irmãs ucranianas, mas também em todas aquelas que sofrem em tantos conflitos armados invisibilizados. Hoje elas lutam, fogem até suas fronteiras buscando outro amanhã com suas filhas, deixando para trás seu povo, suas raízes. Enquanto vemos nas telas, na Ucrânia, muitas mulheres catando neve para conseguir beber água, para alguns parece que a única preocupação é o aumento do preço do cereal para suas produções intensivas. Também elas enchem de sementes os bolsos de alguns soldados russos para que a terra nunca deixa de florescer, apesar da guerra, da violência e da morte.

Irmãs, vocês não estão sozinhas.

Mais um ano, seguimos aqui, estamos aqui. Apesar da pandemia, da seca, do vulcão, das guerras… Aqui nos nomeamos, aqui nos sentimos mais unidas que nunca. Aqui fazemos frente, compartilhamos nossos medos, deixamos de lado o silêncio. Reivindicamos que existem muitas maneiras de habitar o território, muitas ruralidades que dialogam, que constroem, que cuidam e acolhem. Uma de irmãs de terra: cheia de feminismos e diversidade, de agroecologia, de memória, de interdependência, esperança e alegria.

Por um feminismo de todas,

por um feminismo de irmãs de terra.

A ilustração é de Mayte Alvarado. Você pode baixar aqui.

(Este manifesto foi escrito por Lucía López Marco e Maria Sanchéz. Graças aos conselhos e comentários de Celsa Peitado, Julia Alvarez, Blanca Casares, Patricia Dopazo, Karina Rocha, e Elena Medel. E a tantas que nos fizeram chegar seus comentários).

Este manifesto foi traduzido ao português brasileiro por Estela Rosa.

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