Por um feminismo de irmãs de terra

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Março volta, entre frios e incertezas, mas nós voltaremos a encher as ruas, a levantar nossas vozes, a romper os centros com nossas margens e periferias. Mais um março reivindicando nossos direitos, visibilizando o que nos atravessa e afeta. Sentimos que não é uma boa notícia que este ano, entre companheiras, percebamos que este manifesto seja mais necessário que nunca. A situação e as problemáticas que estamos vivendo em nossos territórios nos interpelam de forma urgente e direta para encontrar a força e a palavra entre nós mesmas: para criar vínculos, levar as cadeiras para as ruas, não nos calar nunca mais, não voltar a nos sentir sozinhas.

Hoje queremos trazer a memória, o corpo e a voz. Sem medo, sem pudor, sem reparação.

Por todas aquelas que não podem deixar seus postos de trabalho hoje ou seu papel de cuidadores, que vivem paralisadas pela violência, que trabalham dia após dia sem direitos, que não podem falar porque precisam do pão e do jornal para que os seus sigam vivendo. Que não podem ser vistas em uma manifestação, que não podem se permitir sair às ruas, se unir aos protestos. Este manifesto é também pelas que não poderão sair de casa por conta de barreiras físicas, sofrimentos ou mal estares, por estar internadas em instituições ou hospitais. Fora do discurso dos centros, das instituições e da Academia. Queremos ser alto-falantes, plataforma para todas aquelas as quais o sistema expulsa, explora, maltrata, deixa conscientemente sempre de lado.

Já pensamos no verão que se aproxima, com uma seca que nos dói e angustia. As paisagens nas quais crescemos, vivemos e trabalhamos estão desaparecendo, nossa geografia física e sentimental se transforma em outra coisa. Ainda não sabemos nem temos palavras, mas esse manifesto também quer dizer em voz alta essa dor que muitas carregamos, que transforma nossos corpos e vínculos, nossos afetos e comunidades. Mas não queremos dar oportunidade aos discursos cheios de catástrofes e colapsos. Aqui não se enraizarão os sermões que culpabilizam, que cansam, cheios de instruções, que colocam todo o peso nas pessoas, sem olhar para suas circunstâncias e vulnerabilidades. Preferimos crescer e compartilhar a partir da alegria. Queremos trabalhar juntas por outro porvir, aprender a voltar a nos comover. Pensamos que a partir dos afetos e do susto poderemos germinar juntas em novos espaços e encontros. Para isso também precisamos compartilhar e nomear nossas fragilidades, vulnerabilidades e sofrimentos. Pode ser que este seja um bom motivo para lutar e seguir adiante nestas emergências climáticas. Não podemos nos render ao desânimo, pessimismo, desesperança.

Irmã de terra, alguns farão o possível e impossível para nos impedir de imaginar novos futuros, mas isso não significa que não possamos sonhar, e lutar para tê-los.

Ficamos preocupadas especialmente com os discursos que voltam, romantizando a vida de nossas mães e avós, convertendo-as em heroínas, ocultando com palavras e artimanhas uma ditadura cheia de repressão, desigualdade e violência.

Irmãs de terra,

Viemos daquelas meninas que trabalharam na terra sem poder decidir, que carregaram suas costas com mochilas enormes cheias de renúncias e silêncios. Compartilhamos território com coletivos oprimidos. Não podemos nos esquecer de que aquelas violências seguem entre nós: estão conosco, hoje, especialmente as trabalhadoras temporárias, as imigrantes, as mulheres trans. Sem elas não contemplamos a luta. Não podemos imaginar nem pensar os novos futuros habitáveis e sustentáveis sem elas e suas reivindicações.

Somos descendentes de todas aquelas e também seremos, algum dia, antepassadas para as que chegam. Nunca nos esqueçamos de onde viemos, mas ainda, nestes tempos, em que tanto nos perguntamos aonde queremos ir. Não vamos cair na amnésia, nem caminhar sem memória.

Levamos conosco uma genealogia de resistência: nos dói que certos coletivos urbanos, sempre partindo do centro, apaguem num só golpe de caneta nossos relatos e movimentos de luta, que tornem nossos debates óbvios e simplistas. Ainda que eles não estejam a par, não significa que não estejam acontecendo coisas em nossos povoados, que não estejamos trabalhando pela mudança. Achamos injusto com todos os coletivos e grupos rurais que incansavelmente lutam e se movem por outros meios e territórios possíveis. Acreditar que não existem outras lutas ou debates em nossos povoados nos parece uma visão terrivelmente injusta, paternalista e condescendente.

Sem nós não se entende o território. E não podemos ficar caladas perante as medidas e discursos que sempre nascem e se organizam em nome do desenvolvimento e da sustentabilidade. Basta de transformar nossos meios rurais em zonas de sacrifício, em meras despensas, em aterros sanitários, em simples áreas de descanso para as pessoas da cidade.

Em nossos territórios encontram-se as ferramentas e os saberes que podem se transformar em aliados para mitigar os efeitos da emergência climática na qual vivemos. Mas a realidade é que a cada ano seguimos enxergando como cresce o número de fazendas industriais e intensivas em nossos povoados, e como abrem caminho macroprojetos energéticos em espaços de alto valor ambiental sem levar em conta quem habita aquela terra, nos expulsando de nossos povoados.

Celebramos a visibilidade e as novas denúncias que estão mais presentes, a cada dia, nos lugares. Mas a realidade que vivemos no campo às vezes não concorda com o que o espelho nos devolve: seguimos sem poder tomar decisões, sem acesso a uma habitação digna, à terra. Sem ferramentas para colocar em marcha projetos que trabalhem a soberania alimentar: é mais fácil desenvolver um projeto industrial do que um projeto agroecológico que produza alimentos que cuidem de nossa terra e não nos adoeçam.

Irmãs de terra,

Quem são os que decidem por nós? Quem se beneficia do uso da terra? Quem ter o direito de falar?

Queremos terratrabalho.

Que todas as pessoas tenham acesso a uma alimentação saudável, local e sustentável. Queremos cidadãos e povoados que tenham acesso fácil a alimentos que preservem e cuidem da paisagem. Queremos que todas as pessoas que queiram trabalhar na terra tenham a possibilidade de fazê-lo.

Irmã de terra,

as ameaças que nos colocam em perigo hoje seguem sendo as mesmas de ontem, ainda que se disfarcem com termos como “progresso”, “sustentabilidade” e “prosperidade”. Nós somos como aquelas árvores que eram um habitante a mais em nossos povoados: em sua sombra e abrigo todas as decisões eram tomadas, se falava e se compartilhava, se celebrava os que chegavam e se despedia pela última vez dos que partiam para sempre.

O sistema agroalimentar no qual vivemos acaba com as pequenas criações de gado, com os projetos familiares, com as iniciativas agroecológicas cheias de saberes, relações e formas de trabalho que respeitam a terra. Torna impossível a passagem de geração, a incorporação de jovens que querem viver em nossos povoados. Desaparecem maneiras únicas de habitar o território, de conservar e proteger nossa biodiversidade e seus ecossistemas.

Estamos aqui, juntas, para levantar a voz, para lembrar que não deixaremos de lutar para garantir uma terra digna.

Irmãs de terra,

ainda que queiram nos derrubar, sabemos que juntas não cairemos.

Irmãs de terra,

aquelas que contamos com o privilégio e com as ferramentas necessárias podemos ser as primeiras a revisitar nossas lutas e debates. Como trabalhamos, como nos organizamos, como nos nomeamos? Nós também estamos formando novos relatos, e é imprescindível falar e pensar sobre onde e como fazemos.

Porque precisamos mais que nunca de novas ruralidades cheias de feminismos, agroecologia, diversidade, mas também — como dizíamos — de memória.

Irmãs, vocês não estão sozinhas.

Nós não estamos sozinhas.

Mais um 8 de março, seguimos aqui, estamos aqui.

Aqui nomeamos, aqui nos sentimos mais unidas que nunca. Aqui enfrentamos, compartilhamos nossos medos, deixamos de lado o silêncio. Reivindicamos que existem muitas maneiras de habitar o território, muitas ruralidades que dialogam entre si, que aprendem, que constroem, que cuidam e acolhem. Uma ruralidade de irmãs de terra: cheia de feminismos e diversidade, de memória, de interdependência, de apoio mútuo, esperança e alegria.

Por um feminismo de todas.

por um feminismo de irmãs de terra.

O pôster é obra de La Galana collage (Cecilia Jiménez). Você pode baixar aqui.

**(Este Manifesto foi agitado por María Sánchez e Lucía López Marco. Obrigada aos conselhos e contribuições de Blanca Casares, Patricia Dopazo, Karina Rocha, Julia Álvarez, Neus Miquel, Elisa Oteros, Colectivo Arterra e Elena Medel. E a tantas outras que mandaram suas contribuições.)

***Este manifesto foi traduzido ao português brasileiro por Estela Rosa.

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